Sonhos e o modelo de mente da Psicanálise
17 de setembro de 2020

O Ciúme, esse desdenhado

Transpondo labirintos na psicoterapia psicanalítica [1]

por Ryad Simon (*)

Algumas sessões de psicoterapia psicanalítica acontecem deixando-nos com a impressão de que surgiram assuntos muito intrincados e não vislumbramos um ponto de partida razoável para começar a entender o emaranhado de situações que se sucedem.

Meu paciente de 27 anos começa a sessão dizendo que está confuso. A sessão é de segunda-feira. Inicia falando do sucedido no final de semana. No sábado, junto com a namorada, foi para uma cidade do litoral onde seu pai, de 57 anos, tem um apartamento. [O paciente mora com a mãe, da qual depende economicamente. Desde quando se lembra, os pais viviam brigando, com separações e reconciliações temporárias. Até que, lá pelos sete anos do paciente, separaram-se definitivamente. Os pais não procuraram outros parceiros; de vez em quando se comunicam. O paciente é filho único. O pai há anos deixou de trabalhar e vive da herança de seu progenitor.]

O paciente relata que a mãe resolvera oferecer um jantar para o pai, em comemoração ao aniversário deste, num restaurante da cidade litorânea onde o pai reside. O paciente chega para o jantar acompanhado da namorada. Comenta comigo que a mãe escolheu “um restaurante metido a besta”. E que o pai costuma tomar refeições num restaurante modesto, que o paciente aprecia mais. O paciente senta-se, diz para a mãe que não tem fome; almoçou às quatro e meia. A mãe insiste, o paciente pede uma sardinha. Na hora de pagar a conta a mãe apresenta um cartão Mastercard. O garçom informa que o restaurante não usa esse cartão. A mãe então se levanta e dirige-se ao caixa para pagar com cheque. Nesse ínterim, o paciente se antecipa e paga com cartão Visa. Ao constatar o fato, a mãe explode raivosamente contra o paciente. O pai intervém, tentando moderar os ânimos. A namorada, chocada, levanta-se e sai do restaurante a esmo. O paciente vai a seu encalço, encontra-a aos prantos. Quando voltam, a mãe zomba da suscetibilidade da namorada.

No momento de regressarem a São Paulo, no carro do paciente, a namorada senta-se no banco do passageiro; e a mãe, no banco de trás. O paciente dirige-se à mãe e pede-lhe que afivele o cinto de segurança. Esta tem mais uma explosão, sai do carro, se recusa a ser levada pelo paciente. Diz-lhe que ele não entraria mais em casa, e lhe cortaria a mesada. O pai procura abrandar a agressividade; oferece levá-la em seu carro, mas esta prefere um taxi. Quando o paciente chega, encontra trancado o apartamento onde mora com a mãe, sendo obrigado a ir dormir no pequeno apartamento da namorada.

Diante desse relato complicado, cheio de incidentes (muitos dos quais omiti para não adensá-lo), senti-me diante de um labirinto cheio de alternativas que não levavam a lugar algum. Estranhei a falta de uma perspectiva nesse emaranhado. Fui dormir, e, talvez devido à sessão ter sido inundada de paixão e escassa de compreensão, tive uma insônia criativa, durante a qual surgiu-me um início de entendimento.

O paciente parecia vítima de uma mãe muito ciumenta por seu primeiro namoro; uma namorada
muito sensível que exacerbara o ciúme da mãe; um pai apaziguador frustrado. Então, alguns dados começaram a fazer sentido. Por que o paciente almoçara tão tarde, a ponto de estar sem fome no jantar? Por que depreciara o “restaurante metido a besta” e, ainda, por insistência da mãe, pedira uma simples sardinha? Por que ele se antecipara ao pagamento da mãe, impedindo-a de saldar a conta do jantar pelo aniversário do pai? O aniversário do pai! É isso! O paciente estivera inconscientemente ciumento pelo receio da reaproximação dos pais – que certamente estava implícita na oferta de comemoração da efeméride paterna – e criara uma situação para evitar o risco deles se reconciliarem. Outrora os pais haviam se separado definitivamente e o filho saíra vitorioso na situação edipiana ficando sozinho com a mãe. É claro que, sendo inconsciente seu ciúme, o paciente atuara para induzir na mãe seu ciúme por identificação projetiva (e, ainda, se valendo do ciúme natural da mãe pela namorada) só podendo aparecer como vítima inocente de uma mãe ciumenta desequilibrada.

Na sessão seguinte, quando o paciente falava do desdobramento das agressões da mãe, pude mostrar-lhe os efeitos de seu ciúme inconsciente para evitar a reaproximação dos pais. O paciente conseguiu compreender sua atuação, sentiu culpa pelo transtorno causado aos pais e, aos poucos, sua relação com a mãe teve uma ligeira melhora.

O ciúme é o sentimento desconfortável que surge ao ser repartido com um terceiro (ou mais) o amor da pessoa amada. O impulso imediato é a eliminação do rival. A defesa mais comum é a repressão, que torna o ciúme parcial ou totalmente inconsciente. Quando o sentimento de ciúme é consciente, seus efeitos conseguem ser mais controlados e ajustados à situação objetiva. Estando o ciúme consciente há mais integração; o ódio dirigido à pessoa, que também é amada, fica mitigado pelo amor e a hostilidade pode ser mais contida; os atos provocados pelo ciúme podem ser evitados ou, senão, abrandados. Quando o ciúme é inconsciente os sentimentos de amor e ódio ficam distanciados, facilitando a emergência de atos hostis não reconhecidos pelo sujeito. Quanto mais inteligente o sujeito, melhor consegue seu inconsciente despistar o ciúme atrás de uma série de aparentes ações inocentes, criando uma rede de fatos superficialmente não relacionados, desorientando o observador que, se tenta entender algo, depara-se com um intrincado labirinto. Se uma situação labiríntica se apresenta, e o psicoterapeuta psicanalista tiver como fio condutor[2] a hipótese do ciúme inconsciente, menos aturdido ficará para conjecturar sobre os dados.

Outro exemplo permite ver porque o ciúme inconsciente é tão escorregadio e por isso costuma ser desdenhado e escapa da percepção consciente. Uma paciente de 40 anos, depois de longo e conflituoso caso com homem casado (que promete deixar a esposa, mas nunca concretiza a separação), após muita relutância e sofrimento decide encerrar o caso. Continua em análise, e, alguns anos depois, envolve-se com outro homem casado. Pressiona-o a deixar a esposa como condição para continuarem juntos. Faço o comentário, durante uma das muitas sessões em que o tema ressurge, que ela poderia estar reproduzindo a situação do caso anterior; e que, talvez, o parceiro atual nunca deixasse a esposa para casar-se com ela [3]. Para surpresa minha a paciente retruca que nunca pretenderia casar-se com o parceiro atual; nem com o anterior. Não queria casar para ninguém controlá-la. Queria ser livre. Desejava que fossem apenas namorados, mas cada qual morando em sua própria casa.

Só então pude compreender que a exigência da separação conjugal não era para obter o casamento. Visava apenas se livrar do ciúme da relação do amante com a esposa, porque o sentimento de ciúme, com o passar do tempo, foi se tornando insuportável. Depois de certa relutância – porque também para ela o ciúme era inconsciente – a paciente aceitou convictamente a interpretação. Ela não sabia – nem eu – que a insistência para a separação não era para ficar no lugar da outra. Era para não sofrer o doloroso ciúme pela relação do amante com a esposa.

Correndo o risco de cacetear o leitor vou fazer referência a um terceiro caso, porque é muito ilustrativo da resistência a enxergar o ciúme inconsciente, mesmo quando se trata de paciente intuitiva e com longa experiência de análise. Ela tem cerca de 35 anos, relata que seu namorado recebeu em casa a visita semanal de sua filha de 15 anos, de cuja mãe ele se separara há tempos. A paciente cancela a ida previamente combinada para encontro na casa do namorado. O curioso é que a paciente cogitara ter cancelado o encontro por ciúme. Mas, ela mesma descarta essa interpretação. O namorado convida-a para saírem no dia seguinte, acompanhados da filha, para assistirem a um espetáculo do agrado dos três. A paciente recusa, mas, pela insistência do namorado, acaba cedendo. Cinco minutos após entrarem os três no recinto onde se daria o espetáculo, alegando não sentir-se bem a paciente vai embora. A paciente usa sua familiaridade com a análise para interpretar que sua retirada do local era devida a “não se permitir aproveitar os bons momentos da vida, por causa da auto-inveja”. Vai para a casa da mãe, passando o resto do tempo com ela. Sonha que está tendo uma relação sexual com a mãe. – Interpreto que ela se envolve sexualmente com a mãe, não para ter prazer, mas para excluir o pai (os pais são separados desde que a paciente tinha seis anos de idade). Essa seria a relação de seus sonhos: livre de ciúme. – A paciente retruca que ela sonha com uma relação “grudada” (pré-edípica) que exclui o pai. – Digo-lhe que, se exclui o pai, está implícita uma relação em que o terceiro, o pai, fica impedido de participar. Assim, o ciúme é repelido, como faz com minha interpretação. Aos poucos, a paciente foi assimilando a interpretação da força do ciúme inconsciente em seus relacionamentos. Em sessões posteriores a melhor percepção da força repulsiva do ciúme favoreceu uma aproximação menos angustiante com as pessoas.

O fato de Melanie Klein ter dado tanta ênfase à influência da inveja nas relações mais primitivas do bebê pode ter restringido a percepção da importância do ciúme nas relações humanas. Por exemplo (Klein, Some theoretical conclusions… 1952 p.79): A inveja parece ser inerente à avidez oral. Meu trabalho analítico mostrou-me que a inveja (alternando com sentimentos de amor e gratificação), é primeiramente dirigida ao peito nutridor. A essa inveja primária o ciúme é adicionado quando surge a situação edipiana. E ainda (Klein, Envy and Gratitude. 1957 p. 181): O ciúme é baseado na inveja, mas envolve uma relação com pelo menos duas pessoas; concerne principalmente ao amor que o sujeito sente que lhe é devido e lhe foi tomado por seu rival.

Quanto a Freud, mesmo quando se trata de delírio de ciúme a ênfase vai noutra direção. Cita o caso de uma paciente de 53 anos que apresentava delírio de ciúme do marido com uma funcionária. O delírio seria conseqüência do amor da paciente pelo genro – sentimento que ela repudiava – e projetava no marido com a funcionária. (Freud. Introductory lectures…1916-1917, p. 252-253): “O delírio era necessário como uma reação ao processo mental [paixão inadmissível pelo genro] que inferimos por outras indicações e era precisamente a essa conexão que se devia o caráter delirante e sua resistência a qualquer ataque lógico ou realístico”. Ou seja, Freud coloca o ciúme em segundo plano na construção do delírio, como sendo apenas um artefato para encobrir uma relação amorosa reprimida.

O ciúme, esse irmão mais novo da inveja (mais novo porque a inveja, segundo Klein, surge no primeiro contato com o peito nutridor) é, contudo, a meu ver, mais destrutivo. A inveja surge quando o bebê é inerte, com pouco domínio sobre a motilidade. Em conseqüência, sua destrutividade é mais mental do que física. Ao passo que o ciúme se instala quando o bebê percebe o terceiro e seu controle sobre a motilidade é bem maior, podendo sua destrutividade manifestar-se no campo da ação [4].

A ênfase na influência da inveja encobriu o fato de que o ciúme é vitalmente mais destrutivo. Na situação que desperta inveja o invejoso visa se apossar e, se não consegue, procura destruir o bem invejado. Mas o invejado é poupado, até mesmo para que o invejoso possa se deleitar com a dor da perda do invejado. Na situação de ciúme em que se verifica uma cisão, o sujeito sente que o amor da pessoa amada lhe pertence e foi roubado pelo rival (ou ameaça sê-lo). O ódio se dirige para o rival se imagina que a pessoa amada é ingênua e foi vítima de sedução. Ou se dirige para o companheiro, se presume que este o traiu. Pode se dirigir para ambos os amantes se supõe que o amor emergiu espontânea e reciprocamente. Os prevaricadores são condenados à morte, como se verifica ainda hoje, em algumas culturas. E, mesmo na nossa cultura, até recentemente, o homicida por ciúme era absolvido ou sofria penas mais brandas.

Se a pessoa traída na relação amorosa é mais evoluída e integrada, a ambivalência prevalece e os agentes do ciúme são fisicamente poupados. Os ataques em represália à traição são mais sutis, brandos. Penso que o ciúme provocado pelo amor dado ao outro é mais violento que o ciúme provocado pelo ato sexual com um terceiro. É relativamente comum em nossa cultura uma mulher eventualmente tolerar seu marido tendo relações sexuais com outra. Mas, se nota que ele está amando essa outra, seu ciúme se torna insuportável e provoca ímpetos destrutivos intensos, levando à agressão física ou ruptura da conjugalidade.

Uma demonstração cabal da periculosidade do ciúme no âmbito familiar, quando predominam os mecanismos paranóides, é fornecida pela recente agressão e morte sofrida por uma menina, originando um caso que ocupou os noticiários durante semanas, gerando consternação e revolta na população de São Paulo. Uma menina foi encontrada morta, à noite, pelo zelador, no pátio de um prédio de apartamentos. A versão inicial do pai e da madrasta era que ela teria se debruçado à janela – protegida por uma cerca tecida – e se descuidara, sofrendo uma queda fatal. A perícia desmentiu essa versão, ficando provado afinal que ela fora jogada para ser morta, após ter sido previamente espancada. Provavelmente, a segunda mulher do pai, excessivamente enciumada, teria induzido o pai a exterminar a filha. Desta vez o impulso filicida não pôde ser contido pelo amor paterno e o ciúme levou a um desfecho fatal.

A destrutividade do ciúme é eloqüentemente demonstrada no Velho Testamento. Os dois primeiros filhos de Adão e Eva, os primeiros filhos do homem, foram as primeiras e drásticas vítimas do ciúme. Se faltassem argumentos para demonstrar a destrutividade do ciúme, esse bastaria. Caim não matou Abel por inveja, por Jeová ter dado preferência a sua oferenda. Matou-o por não suportar o amor implícito na escolha divina. Citando a Bíblia Sagrada [5] (Gen, 4 “(…)o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, 5 mas não olhou para Caim, nem para seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e seu semblante tornou-se abatido. 6 O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o teu semblante? 7 Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas, tu deverás dominá-lo [6]”. 8 Caim disse então a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo”. Logo que chegaram ao campo Caim atirou-se sobre o irmão e matou-o.”

A ordem de nascimento influi muito nas relações fraternas. Caim era o primogênito. Seu ciúme de Abel era devido, por certo, ao contemplar o cuidado de Eva com o recém-nascido. Os filhos maiores têm ciúme dos mais novos, pelo desvelo que a mãe lhes dedica. Os filhos menores têm inveja dos mais velhos, devido sua força e aptidão. Em particular, se um filho mais velho é preferido pela mãe, será alvo da inveja e também do ciúme dos mais novos. Essa relação entre irmãos estende-se para além do grupo familiar, implicando qualquer agrupamento humano. Na escola, entre as turmas mais antigas e os recém-chegados. O trote que os veteranos aplicam nos calouros é um exemplo pitoresco dessa relação ciumenta. Às vezes são tão violentos que levam à morte de algum calouro, como tem sido registrado. Nas organizações de trabalho os funcionários mais antigos recebem com reserva ciumenta os recém contratados. Contudo, as trocas afetivas e as colaborações costumam amenizar a rivalidade.

A peça Édipo rei, de Sófocles, apresenta o mito clássico da rivalidade entre pai e filho. É uma demonstração nítida da força destrutiva do ciúme. O pai, Laio, tenta se livrar do predestinado parricídio oracular mandando matar o filho Édipo recém nascido. Este, por sua vez, assassina o pai para ter o amor da mãe Jocasta só para si. Curiosamente, Creonte, sucessor de Laio (portanto o padrasto incógnito, equivalente paterno), oferece a mão de Jocasta e o trono a quem matasse a Esfinge que atormentava o reino de Tebas. Édipo decifra o enigma e a Esfinge, furiosa, atira-se ao mar. E que significava afinal o precioso enigma? Citando a versão mais simples [7]: “Qual o animal que, possuindo voz, anda, pela manhã, em quatro pés, ao meio-dia com dois e, à tarde com três?” Penso que um sentido possível desse enigma singelo relaciona-se ao crescimento do filho, desde bebê, até a maturidade – ao meio-dia – quando então pode dar vazão à força violenta do ciúme, destronando o pai e possuindo a mãe. (Como aliás acontece no reino animal; e na “horda primitiva” de Totem e Tabu.)

Sófocles utiliza seu genial talento para engendrar labirintos que o ciúme inspira visando seus fins nefastos. Labirintos que o psicoterapeuta, como Tirésias dos tempos atuais, precisa decifrar para desvendar as artimanhas do ciúme inconsciente. Porque é somente se cegando, como Tirésias, que o psicoterapeuta psicanalista consegue enxergar os complicados enigmas do inconsciente. Na “família psicanalítica” que se estabelece durante o relacionamento psicoterapeuta-paciente, ocorrem, por ocasião das férias, os mais variados tipos de atuação. Geralmente a ênfase na interpretação do sofrimento pela separação se baseia na teoria da “angústia depressiva” que Klein (1935) descreveu magistral e intuitivamente no artigo “Contribuições à psicogênese dos estados maníaco-depressivos”. A separação das férias (e até mesmo do fim de semana) é inconscientemente identificada ao desmame, à primeira experiência de perda e luto do bebê. Mas o sofrimento depressivo do paciente pelo reviver da separação ficaria mais amplamente compreendido se o psicoterapeuta, além da dor pela privação, incluísse o ciúme instigado pelas fantasias de gratificação do psicoterapeuta com outro parceiro, gratificação essa interminável, concebida na “figura combinada”, que Klein (1927) desvendou em seu trabalho psicanalítico com crianças.

Nos mitos, a rigor, o pai não precisaria ser morto. Bastaria superá-lo na preferência materna. A eliminação se dá, suponho, para se livrar duma vez da tortura do ciúme, pois, estando vivo, a reconciliação sempre seria cogitada (como no caso do primeiro paciente referido). Mas, se na história familiar do paciente a morte do progenitor, ou do irmão, ocorre não apenas na fantasia, mas na realidade, mormente na infância, as conseqüências são funestas. Instala-se e se desenvolve uma culpa onipotente que não permite ao paciente desfrutar do sabor da felicidade em nenhuma circunstância. Perpetua-se uma espécie de infelicidade crônica que nenhum evento, por mais gratificante, remove a sombra da tristeza. Essa culpa persecutória é tão avassaladora que logo se torna inconsciente; mas não menos nociva. É somente através de uma análise minuciosa, que vai ao âmago das fantasias onipotentes, que o paciente consegue rever sua culpa e libertar-se aos poucos da confusão entre realidade psíquica e realidade objetiva que seu ciúme violento provocou.

A Vaidade é um tema pouco abordado na pesquisa psicanalítica. Penso que se pudermos correlacionar a vaidade ao ciúme, vislumbraremos sua importância para compreensão de aspectos significativos da conduta humana. Servirá para tanto a análise breve de outra obra bastante conhecida, e que aparentemente interessaria somente às crianças, porque construída ao modo de uma fábula infantil. Refiro-me à criativa e encantadora Branca de Neve e os Sete Anões, na exuberante versão para desenho animado de Walt Disney. Vou cingir-me ao trecho que envolve vaidade e ciúme. Como todos sabem, a vaidosa rainha consultava de tempos em tempos seu espelho mágico para confirmar se era a mais linda das mulheres. Em minha análise, o espelho mágico é o olho do pai. Quando o espelho mágico aponta a jovem Branca de Neve como a mais linda de todas, a madrasta, irada, manda matar a enteada rival. Aqui se apresenta outro confronto entre a motivação homicida instigada: – pela inveja, ou pelo ciúme? À primeira vista pareceria que a agressividade seria devida à inveja provocada pela superior beleza da jovem princesa. Suponho que, nos labirintos do inconsciente, o temor de que o amor do rei se voltasse para a belíssima mulher que despontava em sua filha Branca de Neve fomentou o ciúme assassino da rainha no ocaso da beldade. Conjecturo que a vaidade, em suas variadas formas, tem por fim defender o vaidoso dos desconfortáveis sentimentos de ciúme. De que modo? – Monopolizando as atenções. Se o vaidoso, com seus artifícios, consegue atrair para si a atenção de todos, não restará ninguém para rivalizar com ele. Essa atenção, no fundo, é a gratificação afetiva que tem sua base na libido. Se o sujeito consegue monopolizar a libido geral, não precisará repartir com ninguém o amor disponível, livrando-se do sofrimento que o ciúme provoca. Acho bastante provável que na história da vaidade de cada um de nós se oculte seu uso como defesa contra o ciúme. Parodiando o francês: cherchez la femme et vous trouverez l’homme, eu diria: Investigue o vaidoso e lá encontrará o ciumento. Pode acontecer de perdermos a noção da serventia da vaidade e ela será praticada por si mesma, em proveito do narcisismo.

Às vezes, na transferência, o paciente se despe para que o olho do analista funcione como um espelho mágico. Despe-se, não para descobrir a verdade – mas para satisfazer a vaidade. Nesse caso, subvertendo (ou pervertendo) a “aliança terapêutica”, para torná-la um sedutor conluio edipiano. Inclusive, quando o paciente é também psicoterapeuta.

Eu estava concluindo a redação deste trabalho, quando, coincidentemente, leio no jornal O Estado de domingo, 01 de agosto, que algumas adolescentes estavam se despindo diante do público, através de um webcam, num site da Internet, o “twitter”. O webcam corresponde ao espelho mágico ao qual a menina diz: “Espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu?” Essa forma de exibicionismo, a meu ver, é superficialmente erótica, mas, no fundo é afetiva, efeito da confusão entre erotismo e amor. Corresponde à menininha dizendo inconscientemente ao pai: “Papai, olhe para mim! Esqueça aquela velha mamãe feia!” Trata-se de uma fábula da Branca de Neve invertida: é a filha vendendo seu sexo para comprar o amor do pai e acabar de vez com a mãe.

A Vergonha é outro sentimento também pouco explorado na pesquisa psicanalítica. Geralmente se associa vergonha à culpa. Culpa de serem descobertas intenções ocultas que o sujeito tenta esconder, ou evita executar, por temor de ser descoberto, porque são ações condenáveis. Creio que a ação mais condenável seria devida à competição com o pai (ou com a mãe, no caso da menina) na disputa pelo amor, durante a infância. Posso ilustrar com a situação do menino que, para não sofrer ciúme da mãe, tenta conquistá-la exibindo seu maravilhoso pênis. A mãe pode fingir deslumbramento confirmando que aquele órgão é realmente excepcional. Quando, em algum momento, o menino descobre que seu maravilhoso minúsculo pênis, comparado com o do pai, é ridiculamente menor, fica consumido pela vergonha. A vergonha seria, então, em sua origem, o vestígio de uma competição ciumenta predestinada ao fracasso. Com o passar do tempo a experiência se torna inconsciente, mas seu efeito inibidor permanece. Se a pessoa arrisca-se a desafiar a competição com algum rival, expõe-se a sofrer uma inibição envergonhada de causa desconhecida. Se os psicoterapeutas psicanalistas atentassem para manifestações vaidosas mais ou menos dissimuladas, e inseguranças encobertas por sentimentos de vergonha não suficientemente justificados, detectariam possíveis pistas para ciúmes ocultos por fracassos sofridos e por isso censurados na remota infância. Minha intenção aqui foi apenas apontar para uma pesquisa mais minuciosa da vaidade e da vergonha, como ramificações de situações de ciúme que permaneceram inconscientes, ficando suas conexões muito distantes e gerando labirintos complicados. São apenas sugestões para aprofundamento da pesquisa em campos emocionais não muito visitados pelos pesquisadores psicanalistas.

Em suma, quero salientar que o invejoso pretende se apropriar do bem do outro, e, se não consegue, procura desdenhá-lo, ou destruí-lo. A ênfase dada à inveja na teoria kleineana pode ter obscurecido a importância da pesquisa do ciúme na prática psicanalítica. O ciumento consciente pode agir de modo violento à descoberta da traição, ou mais civilizadamente. Mas o aspecto mais valioso no processo da psicoterapia psicanalítica é a investigação do ciúme inconsciente. Muitas vezes, em situações psicanalíticas complicadas, labirínticas, procure o ciúme e encontrará uma saída. Porque este, não sendo apreendido, escapa ao domínio do sujeito e leva-o a atuar (acting out) de formas as mais complicadas, gerando emaranhados os mais tortuosos, acarretando relações torturantes aos envolvidos. Esse relacionamento conflituoso pode persistir por anos a fio, como ouvimos nas histórias de caso envolvendo familiares dos pacientes (ou mesmo na própria história pregressa do paciente) se eles se amam suficientemente. Ou estão tão enredados em suas projeções recíprocas que não conseguem separar-se para não perderem o que depositaram no outro. O trabalho paciente em busca de entendimento desses labirintos intermináveis pode levar a interpretações competentes das manipulações induzidas pelo ciúme. Ao serem trazidas à luz as manobras ciumentas que geram infindáveis hostilidades, sua compreensão consciente permite maior controle e favorece mudanças no relacionamento. Aprender a captar o ciúme inconsciente faz toda a diferença entre céu e inferno nas relações familiares [8].

Se o sujeito afinal entende que toda aquela complicação era por não tolerar que o amor da pessoa amada fosse repartido com mais pessoas, encontrará formas mais racionais de dividir o bolo do amor, de tal modo que cada qual fique com uma parte e todos se sintam melhor.

Afinal, o que provoca as guerras, não é a inveja, nem o ciúme; é a voracidade.

Referências bibliográficas

[1] – Apresentado ao 14º Encontro do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica do Instituto de Psicologia – USP, em outubro de 2010.

[2] – Como o fio de Ariadne, que esta deu a Teseu para escapar do labirinto de Creta após matar o Minotauro. (Ironicamente, Ariadne, segundo uma das versões míticas, teve de amargar o ciúme, porque Teseu a abandonou por outra…)

[3] – Eu conjecturava a existência de um Édipo culposo, no qual a paciente ansiava, mas não se permitia, a posse do pai em detrimento da mãe.

[4] – Se acompanharmos Freud, a situação edipiana apresenta-se na fase genital infantil, quando a criança tem já três anos de idade, portanto com domínio muito maior da motilidade.

[5] – Bíblia Sagrada, p. 52 – 84ª Edição revista por Frei J. P. Castro.

[6] – O “pecado” captado pelo Senhor era o ciúme fratricida. Mas a ordem de dominá-lo não pôde ser cumprida.

[7] – Brandão, J. S. – Mitologia Grega, III vol. p.261.

[8] – Creio que em todas as interações humanas: trabalho, esporte, lazer.

Bíblia Sagrada – Edição revista por Frei J. F. P. Castro. S. Paul: Editora Ave-Maria Ltda. 1992.

Brandão, J. S. – Mitologia Grega. vol. III. Petrópolis: Editora Vozes Ltda., 1992.

Freud, S. (1916-1917) – Introductory Lectures to Psycho-Analysis, vol. XVI. London:
Hogarth Press, 1973.

Klein, M. – (1927) Early stages of the Oedipus Conflict. London: in M. Klein: – Contributions to Psycho-Analysis 2 ª ed. – Hogarth Press, 1950.

______ – (1935) A contribution to the psychogenesis of manic-depressive states.
In M. Klein: – Contributions to Psycho-Analysis 2ª ed. – Hogarth
Press, 1950.

______ – (1952) – Some theoretical conclusions regarding the emotional life of
the infant. In The Writings of Melanie Klein, vol. III. London:
Hogarth Press, 1975.

______ – (1957) – Envy and gratitude. In The Writings of Melanie Klein, vol.
III. London: Hogarth Press, 1975.

O Estado de São Paulo: Caderno Metrópole. Edição de 01 de agosto de 2010.


* (10/08/1933 – 01/12/2017) Psicólogo e Psicanalista, Professor Titular aposentado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Autor com vasta obra clínica e teórica publicada em livros e revistas científicas, Idealizador do Curso de Especialização em Psicoterapia Psicanalítica e do Curso de Especialização em Psicoterapia Breve Operacionalizada.